Hoje Cuiabá amanheceu com um silêncio diferente. Um silêncio que pesa, que entristece, que parece vir lá dos anos 50, atravessando o tempo em marcha lenta, como um Cadillac desgastado cortando as ruas vazias da memória. Marcelo Ferri se foi. E junto com ele, uma parte da alma nostálgica da cidade.
Marcelo Ferri era o último Guardião do Tempo. Marcelo não era só um colecionador. Era um guardião do passado, desses que salvam o que o tempo insiste em enterrar. Guardava, com zelo quase religioso, fotografias de Elvis, de Marilyn, de carros reluzentes que já não cruzam avenidas, de aviões que não cortam mais o céu. Guardava, principalmente, a essência de um mundo que escolheu não esquecer.
No quintal, um desfile de carros que já não se veem nas ruas: o imponente Fairlane 500 de 1959, o elegante Impala do mesmo ano, a robusta Chevrolet Apache de 1961, a charmosa Ford F100 de 1962 e a rara Chevrolet Suburban 1957. Cada um restaurado com suas próprias mãos calejadas, com paciência, respeito e uma devoção quase religiosa.
"Tenho respeito por quem criou o original”, dizia. “Montar um carro com peças aleatórias seria como pintar a Mona Lisa com outras cores e cortar seu cabelo.” Para Marcelo, recompor um veículo era um ato de amor, um gesto de fidelidade à arte e à história.
“Sou delicado e fraco como um trator de esteira D10N”, dizia, misturando ironia e verdade, como quem reconhece que o coração mais forte é aquele que também sente. Trabalhava duro, mais de 12 horas por dia, consertando carros antigos — não por dinheiro, mas por amor. Por amor ao tempo que passou e deixou saudade.
Recentemente, ao ver um casarão antigo ser demolido, pediu ao dono os tijolos e tábuas. Queria transformar ruínas em beleza. E transformou. Sozinho, entre um fim de semana e outro, entre um Natal e um Ano Novo, ergueu com as próprias mãos um pedaço de sonho no pomar de casa. “Não sou pedreiro”, dizia, “então não saiu 100% perfeito”. Mas quem precisa de perfeição quando se tem alma?
Marcelo era isso: um apaixonado imperfeito — e por isso mesmo, inesquecível.
Sua casa, cheia de relíquias, hoje chora silenciosa. O cheiro de graxa, de madeira velha e de histórias não contadas ainda paira no ar. As fotos em preto e branco continuam lá, fixadas na parede como um protesto contra o esquecimento. Mas falta ele. Falta sua risada discreta, seu jeito tímido de agradecer um “add” no Facebook, seu orgulho em dizer que nunca viveu de favor, nem de política, nem de mentira.
Hoje, Cuiabá perdeu o maior colecionador do tempo.
E a eternidade ganhou um novo mecânico de memórias.
Descanse em paz, Marcelo Ferri — o último Rockabilly da cidade.
(*) FRANCISCO DAS CHAGAS ROCHA é Membro do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso e administrador da página Cuiabá de Antigamente no Facebook.
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