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Artigos Terça-feira, 04 de Novembro de 2025, 11:03 - A | A

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Terça-feira, 04 de Novembro de 2025, 11h:03 - A | A

PAULO CÉSAR

O betume e o orvalho

Entre o progresso que queima e o orvalho que evapora

PAULO CÉSAR DE SOUZA

Os estacionamentos, predominantemente feitos de pavimento asfáltico, são uma aberração na paisagem urbana de Cuiabá. As instituições públicas, que deveriam dar os melhores exemplos, acumulam e exibem paisagens desoladas — enormes desertos de tonalidade cinza, cobertos de betume, um material de propriedades físico-químicas capaz de refletir quase toda a luz infravermelha. O resultado não poderia ser outro: temperaturas próximas dos 60 °C e a sensação de um segundo sol. Em uma das cidades mais quentes do planeta — seja por sua posição continental, baixa latitude e altitude —, a urbanização insiste em ignorar os efeitos perversos do asfalto em ambientes que poderiam adotar métodos alternativos. Até mesmo o Parque das Águas, um pequeno santuário não escapou da desfiguração. Centenas de arvores cuja umidade e frescor que diminuiriam a intensidade do calor foram carbonizadas por material incandescente.

Esse calor extremo sobre as camadas asfálticas se amplia com o funcionamento dos motores. Também é evidente que já existem tecnologias menos agressivas para construir áreas de estacionamento. E qualquer condutor optaria por uma sombra, se ela existisse, como um dia existiu.

Cada estacionamento de material betuminoso obedece a um padrão construtivo ultrapassado, dissociado das necessidades do nosso tempo. Sob o escrutínio diário de nossa percepção, a natureza comunica, reitera e exemplifica — todos os dias — o nexo de causalidade entre ação humana e efeitos adversos sobre o meio que nos abriga. Insistir nesse método de ocupação do solo reforça a miopia de quem crê que nossas ações são neutras em um ambiente sempre resiliente. Reflete uma cegueira de proporções épicas que ignora lições que a natureza, pacientemente, se incumbe de repetir dia após dia.

O comportamento errático na execução dessas obras revela a conexão entre um Plano Diretor permissivo e, no caso da administração pública, um processo licitatório descompromissado com a temática ambiental. É importante lembrar que a Lei 14.133/2021 enfatiza a observância da necessidade de ações mitigadoras em todas as fases do processo licitatório. A Lei faz diversas referências ao meio natural e aos princípios do desenvolvimento sustentável.

Costuma-se justificar o uso do asfalto em estacionamentos com o argumento de que é uma solução barata e rápida. Talvez essa seja, de fato, a única resposta audível. Mas o raciocínio só se sustenta no curto prazo: o aparente ganho econômico inicial converte-se, com o tempo, em custos ambientais e estruturais muito mais altos. A impermeabilização total do solo elimina a infiltração natural da água, aumenta o risco de alagamentos e sobrecarrega o sistema público de drenagem. A superfície escura acumula calor, ampliando o desconforto térmico e contribuindo para o efeito da camada abrasiva no solo. Soma-se a isso a perda de áreas verdes e permeáveis, comprometendo o equilíbrio hidrológico e empobrecendo a paisagem. Não é preciso grande sabedoria para perceber que cada metro de solo impermeabilizado compromete o ciclo da água e afeta a recarga dos lençóis freáticos. Pequenos córregos deixam de receber água pluvial pela interdição dos locais de recarga. Por consequência, os rios que dependem desses córregos também deixam de ser abastecidos.

Pode parecer apenas mais alguns metros quadrados, mas trata-se de uma soma crescente de solos impermeabilizados, que se juntam a milhares de outras faixas desflorestadas ao longo de nossa jornada humana — o efeito adverso de nosso avanço antrópico, ou, de forma menos sublime, o flagelo de outras espécies.

Nosso interesse em preservar o meio ambiente está gravado nas fachadas de prédios públicos, nas missões institucionais, em nossa legislação e em acordos internacionais. Contudo, poucas dessas ideias resistem ao exame minucioso de sua aplicação cotidiana.

Ao longo da escala evolutiva, a natureza moldou a pele do planeta de um modo nem sempre conveniente para nós. Ela distribuiu bilhões de árvores na superfície e bilhões de metros cúbicos de carbono fóssil sob a terra, a água e as rochas. Nós, com a crença de sermos seres com habilidades superiores à natureza, invertemos essa ordem. Apostamos alto usando tecnologia recente para desafiar um processo evolutivo de bilhões de anos.

Descartes afirmou que devemos “tornar-nos senhores e possuidores da natureza”. Não se trata de dominar destrutivamente, mas de compreender suas dinâmicas, aplicando ciência e técnica de forma racional para converter as propriedades do átomo em benefício da humanidade. Todavia, essa compreensão desaparece quando suprimimos todo o ambiente natural para erguer artefatos exclusivamente humanos. Excluir um espaço equilibrado por séculos e substituí-lo por betume, aço, concreto e vidro que no máximo agrada à estética humana, mas instaura desordem ecológica.

Denominamos nossa engenharia de progresso e dormimos serenos acreditando que as demais espécies coexistem apenas para nos servir. É a escalada da arrogância confrontando a inteligência. Ao suprimir continuadamente as belas e majestosas árvores retorcidas do cerrado, perdemos mais que gotas de orvalho: caminhamos rumo a rupturas ecológicas ao nos depararmos com um clima cada vez mais hostil. Cuiabá, que há poucas décadas possuía dezenas de córregos para lazer e pesca, hoje os vê soterrados sob esgoto e concreto — vítimas sanhas imobiliárias, grilagens e de políticas negligentes.

A disponibilidade hídrica se mostra estressada em todo o planeta. Não deve haver qualquer hesitação para mantermos íntegro o estoque do líquido vital que forma 90% dos organismos. Em um paradoxo, A NASA busca por vestígios desse elemento em bilionárias viagens planetárias – seria o equivalente contemporâneo ao descobrimento do Santo Graal.

Sobrecarregados pelas rotinas diárias, nem sempre percebemos como pequenos ajustes podem gerar grandes transformações. Se benevolência e compaixão são exigências elevadas demais para protegermos nosso ponto azul no cosmos, que o façamos, ao menos, por necessidade.

(*) PAULO CÉZAR DE SOUZA é mestre em Economia pela UFMT.

Os artigos assinados são de responsabilidade dos autores e não refletem necessariamente a opinião do site de notícias www.hnt.com.br

 

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