Segunda-feira, 20 de Outubro de 2025
facebook001.png instagram001.png twitter001.png youtube001.png whatsapp001.png
dolar R$ 5,37
euro R$ 6,22
libra R$ 6,22

00:00:00

image
facebook001.png instagram001.png twitter001.png youtube001.png whatsapp001.png

00:00:00

image
dolar R$ 5,37
euro R$ 6,22
libra R$ 6,22

Artigos Segunda-feira, 20 de Outubro de 2025, 09:23 - A | A

facebook instagram twitter youtube whatsapp

Segunda-feira, 20 de Outubro de 2025, 09h:23 - A | A

ELISMAR BEZERRA

O tempo que atravessa um poema e esta prosa-poética

ELISMAR BEZERRA

Dias desses, depois do trabalho, mais cansado da cabeça, do juízo, que do corpo, dei-me tempo para um poema – que uma moça lia sem mostrar o escrito, pra parecer que o sabia de cor. Voz bem postada, agradável, com gestos de atriz na boca bem feita e tez leve, de gente que gosta de encantar e cativar olhos descuidados; um tipo que se multiplicou em milhares de vezes, nestes tempos substanciados pelas redes digitais, de indivíduos atomizados, distanciados entre si, sem as propriedades do amor-verdadeiro que exige sempre sentir e tocar para ser. Em guarda, precavido para esses laços, cauto para sensualidades vãs, ainda mais para as viçosas e astutas, segui vendo o filminho feito com arte, cheio de desconfianças das intenções da moça...

Ouvi por um tempo, aí quis parar de ouvi-la. Pus o olhar para longe da sua imagem, e fiquei a ouvir somente a voz, com a pressa de olhar coisa sem futuro. Insisti comigo para ouvir tudo, porque o poema era bem urdido, feito com inteligência e sensibilidade de quem gosta de tentar entender o amor, para além dos discursos falazes. Ponderei se não deveria entrar no poema, quase enredado nas armadilhas da moça; mas, aí, senti a voz dela ficando demorada, arrastando-se em muitas palavras de sentido rebuscado, repetidas desnecessariamente; e fui me aprofundando em impaciências sem razão de ser – porque eu tinha tempo para ter a paciência para o poema inteiro, mas, alguma coisa na moça não me dava gosto para gastá-lo ali...

Dei conta de mim, desouvindo a moça. Com os sentidos postados em indefinições, em coisas desmaterializadas, que nada cobra ou requer para ser a efemeridade que é; porque, querer essas singelezas, é complexo, toma muito tempo, grande parte do tempo do universo humano, acossado pelo assalariamento, querendo totalizar a vida. E a gente nem se preocupa em dizê-las, porque não tem sentido dizê-las; de modo que, talvez, nem devesse escrevê-las. Mas, é que, um poema, é coisa tão besta, de tão leve que é, que faz a ignorância se desembestar mais nas suas superficialidades rasas: medrosa que é, das profundezas das coisas pensadas. Daí que lembrei das inteligências escritas de Levi Alt e Sodré, num tempo em que poemávamos nas paredes da Universidade – poema talvez seja isso mesmo: coisa de se dizer e esquecer, de se ouvir e desouvir, esquecido, para não cansar. Mas, o certo é que tem deles, que se entranha na gente, avivando-se por si, como notícia boa, mesmo depois do poeta morto: faz tempo que eles se elevaram a só fazerem poemas pra Deus...

Com meus comigo-mesmos, agasalhei num canto do ouvido os cantos estridentes e diversos das cigarras, dum jeito que não atrapalhasse os pensamentos que se atropelavam buscando entendimento para a não paciência para ouvir o poema declamado pela moça. Porque, quando se ouve Bia falar um poema, fazendo como se solfejos, como se cantasse, é diferente: vê-se que ensina os poetas – seja Toninho, sejam Manuéis de Barros e Bandeiras ou Lucindas – sobre sonoridades escondidas nas próprias palavras deles, que não sabiam tê-las criado. A voz dela assopra palavras, como se soprasse cinzas para fazer avivar as brasas de suas significâncias, de jeito que a fumaça leve que sai é incenso, translúcido, que flana como pranas; que faz lembrar as asas das libélulas, que, de tão belas e leves, fez Quintana anotar que “até seu nome científico é Libélula, mesmo”.

A música ruim toca alto, ferindo o bom gosto; e porque sabe-se ruim, tenta se impor por essa violência. A música boa, não: acomoda-se satisfeita no espaço de quem a quer ouvir; mas, eleva-se inquieta, a dúvida marxiana: o que é, ou o que faz ser, uma música boa? Melhor fosse tudo ser apenas implicâncias das cabeças moldadas em mais de meio século de coisas analógicas, a desconfiar arrediamente das formas algorítmicas, que tudo quer dominar; mas, é desconfiança marxiana, diuturna, que tenta ver nessas formas o interesse de quem a domina e difunde como coisa supra-humana – que não é. A consciência machuca o que se fez consciente!

Aliviou o ambiente, a fala da moça chegando ao fim; não por ela, nem pelo poema: foi por não ter que dividir os sentidos com mais nada. Mas, o espírito contaminado pela necessidade de quem nos impõe o seu interesse como se nosso fosse, instiga-me a levantar pra fazer (sempre com pressa) o que não me é necessário. Permaneci comigo, sem necessidade de pressa, porque assim, eu me tenho. Olho no derredor: eis nas franjas da rede, balançando leves ao vento da bruma, a afiguração da preguiça – com que me caracterizará o vizinho, se me vir assim. Preocupo-me, porque sem fazer alguma coisa, aquele interesse já determinou a todos que, assim, devo ser tomado como desnecessário; para ser, está estabelecido: tem-se que fazer alguma coisa pra comerciar. Daí, que, se nada tens, tens que te rebaixar à coisa-mercadoria e, assim ser para te venderes inteiro, corpo e alma, na forma do assalariamento...

Talvez, a moça do poema estivesse a fazer a coisa que imaginava que lhe fizesse superiormente, ser. Remorso passageiro: tive ganas de lhe pedir perdão, pelo desprezo à atividade dela numa carta, não carta de amor, mas carta tipo-comercial, pois, diz-me Pessoa: “todas as cartas de amor são ridículas”. Olhei no espelho, e o que vi? Dizer, não digo. Impõem-se, os muito anos acumulados em sinais, vincos epidérmicos, desenhados por um tempo que nem pedra respeita; então, tento ver espelhado nos outros de tempos iguais o que, olhando, não vejo em mim, no espelho defronte. Assim, sem saber o que lhes aparento ser, nada lhes pergunto, ainda que quisesse saber como estou, depois de mais de meio século sob sol e chuva e tantas esperanças a engruvinhar a tez, a encurtar as vistas, reduzir correrias e selecionar muito as necessidades - calei-me conformado com o que só desconfio, sobre a ação do tempo em mim: tem pergunta que não se deve perguntar...

Os artigos assinados são de responsabilidade dos autores e não refletem necessariamente a opinião do site de notícias www.hnt.com.br

 

Clique aqui e faça parte no nosso grupo para receber as últimas do HiperNoticias.

Clique aqui e faça parte do nosso grupo no Telegram.

Siga-nos no TWITTER ; INSTAGRAM  e FACEBOOK e acompanhe as notícias em primeira mão.

Comente esta notícia

Algo errado nesta matéria ?

Use este espaço apenas para a comunicação de erros

653027-4009

pautas@hipernoticias.com.br