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Quinta-feira, 07 de Dezembro de 2017, 16h:50

Os policiais militares e a reforma da previdência: algumas considerações

O déficit da previdência brasileira advém do desequilíbrio fiscal

GABRIEL LEAL

 

Arquivo Pessoal

Gabriel Leal

 

O maior artigo de fé do Brasil hoje é a reforma da previdência. Dias atrás o governo federal lançou uma campanha em rádio e TV, inclusive por ora suspensa judicialmente, que visava esclarecer a população quanto ao foco da reforma, isto é, aqueles privilegiados que trabalham pouco, se aposentam cedo e recebem muito, para estes, exige-se ? a fim de evitar um colapso ? cortar favores restabelecendo assim a justiça aos mais pobres, estes oriundos do regime geral do INSS. Isto posto, não vou defender o lado negacionista que reputa ao trilionário déficit previdenciário uma maquiavélica falácia contábil, e que a retórica contida na PEC 287/2016 seja meramente retórica, pois, embora a seguridade social possa ser defendida para que não mude estruturalmente, não está imune a críticas. Portanto, nem tanto o céu como o inferno, também...

 

A questão central da previdência é a ruptura, ou não, com seu fundamento filosófico, por assim dizer, contido em nossa Constituição. Não seria pois, nem a análise econômica sobre o regime “geral” tampouco o “próprio” atinente aos servidores públicos, menos ainda, os militares (que não têm previdência; explicarei à frente). Ou seja, o fundamento é a ideia de “sistema”, que é base da manutenção dos suportes sociais ofertados ao trabalhador no contrato social brasileiro, a CF/88. Explico no que segue.

 

A seguridade social brasileira está arquitetada como conjunto integrado de ações, ou melhor, como uma teia de proteção social ao cidadão. De maneira que, quando a Constituição Federal disciplina essa base de sustentação social estabelece que, a despeito da contribuição, ele, Estado, deverá garantir esse mínimo social na forma de seguro, que se diversifica em várias modalidades, da aposentadoria ao auxílio-reclusão, por exemplo. O Estado, dessa forma, em se tratando de previdência social se comporta como promotor de cidadania, e todas essas, inclusive a previdência, dadas na forma de direito social, art. 6 da CF.

 

Em outras palavras, quando o Estado confere aposentadoria a alguém está, em regra, garantindo um direito àquele cidadão-trabalhador, muito além do que seus méritos contábeis poderiam haurir do recolhido, e portanto apesar da contabilidade individual do trabalhador, receberá o que puder garantir esse Estado como malha de proteção, sistematicamente e, quero insistir, apesar do contribuído.

 

Assim sendo, a noção que devemos ter não é de retribuição em fundo regime a regime, mas de repartição equânime e sistemática. A grande chave de leitura mora aqui, que a previdência não é um seguro capitalizado pela contribuição do trabalhador para ser avitária, mas um complexo de ações sociais do Estado comparadas a construir hospitais ou abrir estradas, que são garantidas de antemão por meio dos recursos advindos de múltiplas fontes, sobretudo aquelas que poderiam vir caso houvesse critério técnico para desoneração fiscal e taxação das grandes fortunas (até hoje não disciplinada em lei, como determina a CF) ? para citar apenas duas possiblidades, as quais eu poderia somar uma reforma administrativa profunda a eliminar, por ex, os mais de vinte mil cargos comissionados do Planalto. O que estou a dizer até de forma elíptica é que não há vilões da previdência social, como se parece vender o servidor público, mas responsáveis muito irresponsáveis em gerir eficazmente os recursos públicos e, ato contínuo, conferir gestão às peças orçamentárias, probidade na execução, sobremaneira, justiça fiscal ? equitativamente repartida, como se pretende ao seguro-aposentadoria. De forma mais direta, uma reforma da previdência só terá sentido se ligada a uma reforma fiscal e tributária; o que parece não ser o caso. Essa análise de fundamentos que faço, necessariamente, deverá anteceder qualquer solução acerca dos números e dos regimes diferenciados pois antecedem o debate sobre eles. Dessa forma, feita essa ponderação de partida em honra a Constituição, sigamos então aos regimes.

 

Basicamente o déficit da previdência brasileira advém do desequilíbrio fiscal. Entenda-se, por desequilíbrio fiscal nesse contexto previdenciário, uma ausência de harmonia entre demografia e economia doméstica, ou, entre tempo de contribuição individual do cidadão-trabalhador e sua respectiva expectativa de sobrevida, que seria o hiato entre a aposentadoria e a morte, justamente estabelecidas se contadas geopoliticamente (o que sabemos, pela PEC 287, não ser...). Logo, fatores como crescimento vegetativo da população associado a mercado de trabalho aquecido são fundamentais para esse tal equilíbrio fiscal, pois como dissemos o seguro-aposentadoria, embora armado no interior de um programa social constitucional que o encara como mais uma política pública, recebe como base de cálculo essa agenda liberal, que traduzo como sendo a capacidade de uma geração suportar a anterior produtivamente. Por isso, uma sociedade com aumento na expectativa de sobrevida combinado à redução nas taxas de natalidade, terá nesse esquema global de repartição déficit atuarial, que vem a ser a soma dos fluxos de receitas e despesas, trazidas a valor presente. Ou seja, o déficit alegado que ultrapassa em muito o bilhão é fictício sim, mas extremamente real quando observamos a Grécia, que teve transformada em realidade o déficit atuarial identificado ainda nos anos 80, e que levou aos gregos o corte nas aposentadorias futuras e suspenção das existentes, até que pacotes severos de austeridade fossem assinados, prevendo, inclusive, o nivelamento do mínimo a todo funcionalismo público. Sigamos.

 

Atualmente, o total da despesa com benefícios administrados pelo INSS é de aproximadamente R$ 500 bilhões, por volta de R$ 150 bilhões de déficit. Para além desse número, a despesa do governo federal com os servidores civis está em cerca de R$ 70 bilhões em 2016, com déficit de R$ 35 bilhões. Nos Estados, a soma dos déficits aproxima-se de R$ 80 bilhões. Em 2017, o Brasil gastou 55% do seu orçamento com previdência, o que reforça o argumento que os investimentos estão sendo solapados por quem no topo desses benefícios mais aufere rendimento, como pensionistas em acúmulo e, decerto, servidores públicos civis que, em média, no Congresso percebem R$ 28.527, no Judiciário, R$ 25.832, e no executivo, R$ 7.499 (Fonte: Estadão Conteúdo em 27.11.16), o que gera um abismo com aqueles do regime geral, cuja média dos proventos é de 1.800,00 R$.

 

Ora, se o regime é de repartição equitativa resta que seja justo universalmente, independente do seu regime e com gastos proporcionais a quantidade de beneficiários. Com esse desequilíbrio entre os fundos cuja reserva final é a mesma, é disparado um efeito funesto, a saber: aumento da carga tributária (lembrem-se da proposta de recriação da CPMF a fim de cobrir gastos da previdência...); diminuição de investimentos públicos e aumento dos juros reais (oriundos da suspeita de que o Estado não vai honrar seus compromissos). De modo contábil (atuarial), a previdência social brasileira é um barril de pólvora prestes a explodir, e é preciso anuir ao presidente Temer quando em 2016 afirmou que em 10 anos deixaríamos de pagar as aposentadorias (matéria de Marcelo Loureiro, em 11/10, O Globo).

 

Por outro lado, no que tange a capacidade de sustentação financeira do sistema, agora olhado como sis-te-ma de seguridade social, como estamos?

 

Em breves palavras, que o sistema iria muito bem obrigado, caso a modalidade de cálculo desse déficit apocalíptico observasse o apregoado no art. 195 da CF, e não como é feito a título de alarmismo, baseando-se na arrecadação líquida das contribuições menos o valor dos benefícios pagos, resultado que, obviamente, remete a saldo negativo. Em contrapartida, como nosso contrato social diz, o sistema de seguridade social é um direito à cidadania ao invés de uma contrapartida contábil de contribuições somadas, ou, para exemplificar: não é o que você contribui com o sistema energético brasileiro que financia a luz que brilha em sua residência, que pode ser tanto para mais ou para menos da sua necessidade proporcional conquistada via imposto. E, conforme a profa. Denise Lobato em tese doutoral apresentada no Instituto de Economia da UFRJ “se computada a totalidade das fontes de recursos da previdência e deduzida a despesa total, inclusive os gastos administrativos com pessoal, custeio e dívida do setor, bem como outros gastos não-previdenciários, o resultado apurado será um superávit de R$ 8,26 bilhões em 2004”.

 

Em suma, enquanto o cálculo do saldo previdenciário estiver atrelado a um único financiador, ou seja, o trabalhador, jamais haverá saldo positivo, quando, na verdade, e segundo a própria Constituição, as fontes são múltiplas e devem caminhar pari passu a reformas administrativa e fiscal (por princípios, art. 37 da CF), a primeira buscando evitar supersalários e comissionados principalmente, e a segunda, a “sonegação” consentida vinda da desoneração por atacado. Tudo isso, para não citar o poço sem fundo da ineficiência brasileira que financiou a maior empresa do ramo de proteína do planeta (JBS), ao que tudo indica, equivocadamente. 

 

Considerando, apenas por hipótese, que o Estado levasse a termo reformas paralelas e concomitantes à da previdência, questões como idade mínima e tempo de contribuição poderiam ser, de fato, discutidas. Por que de “fato”? Em primeiro lugar, porque o sistema de seguridade social deve migrar da concepção socialista de distribuição para um regime que tenda a capitalização ? sem meias-palavras. Não usei a tinta necessária até aqui para dizer que, em que pese a base de cálculo para o rombo da previdência seja em alguma medida falaciosa, é, contudo e lateralmente, a contínua e insistente lei do mercado que dita a regra do regime de trabalho mais competitivo, e que, consequentemente, levará a regimes previdenciários mais restritos em direitos.

 

Em outras palavras, embora a Constituição apregoe naquilo que chamei de sua filosofia, ou seu espírito garantidor, é o mercado globalizado que impõe ao Brasil as regras que melhor se encaixam aos resultados pretendidos, e isso, sem qualquer margem de escolha a população que já está mergulhada num modo de vida referido ao estrangeiro, tipicamente americanizado. E, por pretensos liberais ligados a um sem número de acordos comerciais que fomos compelido a nos tornar, a nação brasileira deve, sim, entender que trata-se de um momento de reformas, sem volta, apesar de supostos direitos adquiridos, especialmente quando me refiro a aposentadorias exorbitantes, na média, ao setor privado. E, para tal, o critério da reforma previdenciária que seja, antes de tudo, geopolítica e socialmente orientada, particularidade a particularidade sopesada em detalhe.  

 

E quanto aos policiais militares, eles são de fato privilegiados? O que podemos dizer do regime de previdência especial que possuem?

 

Reportagem da Folha de SP apontou que desde 2001, a cada cinco dias no Estado de SP, um policial militar é morto. Em 2012, a mesma Folha relatava que a cada 32 horas um policial morria, e que, conforme o Instituto Sou da Paz, entre 2013-14, 70% deles estavam fora de serviço e cuja causa mortis estava ligada, também segundo a pesquisa, a condição de policial em tempo integral, que pelo porte de arma e treinamento, vê-se obrigado a reagir e intervir em ocorrências mesmo no horário de descanso (mais de 600 BOs foram analisados nesse sentido). Em setembro, este ano, o Rio de Janeiro ultrapassou a centena de mortos. Em outros estados, considerando a carência de pesquisas não é possível estabelecer uma homogeneidade direta. Todavia, observando a proporção do efetivo em relação à população e sobretudo a incidência nacional das grandes facções depreende-se níveis não muito discrepantes, senão de mortes, de agudo estresse e qualidade de vida dificultadas pelo risco da vida.

 

Por isso, em regra, a carreira policial-militar não tem um regime de previdência no interior de um plano que envolva descolamento definitivo com a prática profissional, pois uma vez policial sempre policial. E, a própria noção de “aposentadoria” não se enquadra a profissionais que não deixam o ofício e apenas ingressam na reserva sendo regularmente convocados havendo necessidade, de sorte que, somente com a reforma é que o militar deixa de atuar. Assim sendo, não estamos diante de uma carreira qualquer, mas de um modo de vida que envolve sacrifício e sujeição integral a uma cadeia de comando rígida e estatutos disciplinares que vão da advertência à prisão.

 

Além do risco da vida e da impossibilidade de aposentadoria, ao policial é vedado qualquer dedicação paralela a atividade, como o acúmulo de cargos, e mesmo, a consultoria ou assessoria privadas, quando realizadas pelo militar, em períodos de crise econômica com maior acento, legam a esse profissional um aprofundamento a pior na sua qualidade e sobretudo expectativa de sobrevida. A dedicação integral menos que uma regra a ser cumprida por lei é uma condição inescapável que impõe ao policial certo sofrimento, quando no completamento necessário da renda familiar deteriorada com acréscimo de risco ou, em atividades de magistério, por exemplo, quando o militar não poderá adaptar formalmente dois regimes de trabalho ? como a maioria dos demais profissionais.

 

Somado às questões anteriores lembraria ainda a disponibilidade permanente que o policial deve ter em relação à sua cadeia hierárquica, especialmente nos rincões do Brasil onde desempenha 24h por dia, além da necessária mobilidade geográfica a bem do serviço, sem consulta prévia do impacto sócio-familiar muito menos indenização na remuneração no período em que lá se encontrar a serviço, às vezes por vários anos. Posso citar ainda a série de vedações aos policiais militares, tais como: a) Proibição à filiação a partidos políticos; b) Proibição à sindicalização e à greve; c) vedação a direitos sociais como: c.1) remuneração do trabalho noturno superior ao diurno; c.2) jornada de trabalho diária limitada a oito horas; c.3) remuneração de serviço extraordinário, que extrapole as oito horas diárias estabelecidas pela Constituição como limite ao trabalho legal para as demais categorias; c.4) seguro de acidentes de trabalho; c.5) adicional de atividades penosas, insalubres ou perigosas; c.6) Fundo de Garantia por Tempo de Serviço.

 

No que se refere ao tempo de contribuição o cálculo preciso teria que considerar um regime de escala de trabalho (12x24-12x48 ou 24x72) ao longo dos anos somados aos períodos em escalas extraordinárias, audiências em Fóruns e atividades, no caso dos Oficiais de polícia, como a investigação em Inquérito policial, além é claro, da função de juízes militares nas varas de Justiça Militar, sem prejuízo das demais atividades e sem auxílios ou indenizações.

 

Portanto, qualquer cálculo que estabeleça comparativos entre servidores civis e policiais militares devem considerar o banco de horas de trabalho deste profissional ao longo do tempo global de atividade. Tudo isso, para ressaltar que em boa parte do território brasileiro são os policiais os únicos “equipamentos” do Estado de direito 24h por dia, e nesses, nalguns casos, com proventos sofríveis e com a reserva remunerada apenas como passaporte para uma sobrevida doente. Com índices alarmantes de adição a álcool e drogas ilícitas entre a tropa, e ferrenha vulnerabilidade sócio-profissional advinda do estigma dos anos de chumbo; as polícias militares agora têm, no último respiro de sua honrada e difícil missão, isto é, a reserva remunerada após 30 anos de serviço, o alvo de um “privilégio”, o objeto a ser retirado porque injusto quando comparado aos demais cidadãos. Mas será que analisaram primeiro, se os policiais Brasil afora já são plenos cidadãos? Creio que não. Dessa forma, andou bem a PEC 287 em retirar do texto da reforma os militares das FFAA e, consequentemente, os militares estaduais até porque uma revisão mais profunda, e sem paixões alarmistas, oportunize a leitura de um reforma na seguridade profissional de profissionais ainda sem a devida seguridade, o que, pensando bem, poderá ser ? caso realmente analisado ? efetivamente custoso aos cofres públicos; pois afinal quanto vale uma vida?

 

*GABRIEL LEAL é Major PM. Doutor em Educação PUC/SP. Mestre em Educação, UFMT. Bacharel e especialista em Segurança Pública pela Academia de Polícia Militar Costa Verde.