Um rio passa por minha cidade, e apesar de sua imensidão e beleza, ele passa despercebido para muita gente, gente que passa apressada pela ponte, com medo de chegar atrasada ao trabalho. Gente que acha, simplesmente, que o rio sempre percorreu e vai continuar percorrendo seu leito monótono, destituído de qualquer importância ou poesia.
Mas no rio de minha cidade, a algum tempo atrás, só navegavam as canoas dos índios. Gente que tirava o alimento das águas límpidas, habitadas por cardumes imensos de pintados, piraputangas, cacharas e pacús, uma fartura que submergiu na correnteza quando o homem branco começou a chegar, trazido pelo sonho reluzente dos garimpos de ouro e diamante.
Aí começou a agonia do rio, com igaretês e chalanas chegando, carregados de homens, bateias, dragas e ambição. O rio foi a estrada que trouxe uma nova gente, gente da terra e de além-mar, gente que iluminava a casa com lamparinas de azeite de peixe, gente que matou a sede, a fome e o calor nas águas do rio.
Garimpeiros que afogaram o rio em um mar de areia, sem jamais observar o reflexo calmo das árvores, debruçado sobre o espelho da correnteza. Uma correnteza determinada e imbatível em seu destino certeiro de se unir as águas do rio Paraguai para depois realizar o grande encontro com as águas do Atlântico.
Este rio que passa por minha cidade, apesar de todas as agressões, continua generoso.
Sua voz mansa conta segredos e histórias que se perderam na correnteza das eras. Um rio de sabedoria, silêncio e humildade.
Um rio chamado Cuiabá, lontra brilhante, pro guarani, pro bororo, flecha de pescar. Rio das aves, dos bichos e dos homens que ainda sabem escutar a voz encantada das águas, no murmúrio dos remansos e corredeiras.
(*) PAULO WAGNER é Escritor, Jornalista e Mestre em Estudos de Linguagem pela UFMT e escreve para HiperNotícias aos sábados. E-mail: [email protected]
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